Parceria entre Unesp e Defesa Civil de São Paulo leva treinamento para logística em situações de desastre a diversas regiões do estado
Crescimento de desastres naturais exige que cidades menores desenvolvam planos para emergências, alerta o especialista. A pedido da ONU, docente já capacitou equipes no maior campo de refugiados do mundo, em Bangladesh, e colaborou no Comitê de Gestão Humanitária que geriu ações no enfrentamento à pandemia.
A Unesp vem trabalhando com agentes da Defesa Civil do Estado de São Paulo na oferta de cursos de extensão visando o aprimoramento da logística humanitária em situações de desastres, como inundações, alagamentos, incêndios ou deslizamentos de terra. Na mesma linha, especialistas da Universidade elaboraram manuais práticos com orientações sobre os protocolos a serem aplicados no contexto de desastres, e no desenvolvimento de um software para orientar a demanda por suprimentos nessas situações de emergência.
A criação da Defesa Civil em São Paulo está ligada à ocorrência de uma série de graves tragédias nas décadas de 1960 e 1970, como a enchente que ocorreu no município de Caraguatatuba, em março de 1967, e os incêndios que devastaram os edifícios Andraus, em 1972, e Joelma, em 1974. Tais eventos deixaram centenas de vítimas fatais e demonstraram a necessidade da criação de um órgão responsável por coordenar as respostas de diferentes agentes públicos em situações de desastre, e que também atuasse para preveni-los.
A logística humanitária costuma ser parte importante da atuação da Defesa Civil, em especial nos dias seguintes à ocorrência de grandes desastres. Nestes momentos abundam os desafios, tais como o socorro a desabrigados e vítimas que precisam de abrigo e mantimentos. “Em situações de desastres, as primeiras seis horas destinam-se à atuação do Corpo de Bombeiros. A partir da sexta hora a Defesa Civil começa a atuar”, explica o engenheiro Irineu de Brito Júnior, docente do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, campus de São José dos Campos, e pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED), ligado à USP. “Essa atuação inicial inclui o que se chama suprimento de alívio. O conteúdo desse suprimento varia um pouco dependendo do perfil do desastre, mas em geral inclui água, colchão, roupas, kit de limpeza e um kit de higiene”, explica Brito Júnior.
Desde 2013, ele oferecia um curso de extensão abordando esses conteúdos nas dependências do Instituto de Ciência e Tecnologia, em São José dos Campos. A partir de 2023, a iniciativa passou a receber apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), da Unesp, por meio do edital Vamos Transformar o Mundo, que tem como finalidade apoiar iniciativas que efetivamente promovam um impacto social relevante e contribuam para a consecução da Agenda 2030. O apoio permitiu levar os treinamentos para equipes em cidades do interior de São Paulo, atendendo as regiões de Mairiporã, Guarujá, São Sebastião, Mogi Guaçu, Cajati e Jaú, além de três turmas na capital.
Ao todo, o curso tem duração de um fim de semana, sendo quatro horas de leitura prévia e 16 horas de aula presencial. O conteúdo envolve noções de operações humanitárias, conceitos básicos de logística, estratégias de abastecimento, gestão logística de abrigos, triagem e distribuição de doações, entre outros assuntos. Além dos integrantes da Defesa Civil, o curso também costuma receber bombeiros, voluntários da Cruz Vermelha e militares da Força Aérea e Exército, além de alunos de graduação e de pós-graduação. Desde 2013, mais de 700 pessoas participaram dos cursos de formação.
A estrutura da Defesa Civil conta com diversos centros de distribuição de suprimentos emergenciais espalhados pelo estado de São Paulo. A ideia do sistema é que esses espaços consigam responder às demandas que surjam nas primeiras horas após o desastre. Para auxiliar na dinâmica desse sistema, os pesquisadores desenvolveram um software capaz de indicar quais suprimentos estão disponíveis em cada centro, e orientar o processo de distribuição a partir do local onde estão disponíveis, e o tipo da demanda. “A ideia é que, em seis horas após o desastre, as vítimas já possam ter à disposição um kit básico de dignidade e sobrevivência”, diz Irineu.
Preparação também para voluntários
Em outra frente de colaboração, a Unesp tem elaborado protocolos voltados principalmente para voluntários que atuam na resposta aos desastres. “Isso é importante porque muitas vezes esses voluntários vão fazer tarefas como a triagem de doações, mas não têm a menor experiência nesse trabalho. É comum acontecer isso após os desastres. Esses protocolos curtos, que abordam as diferentes atividades da logística, orientam os voluntários quanto ao que fazer”, destaca.
Embora a preparação das equipes e a estrutura dos centros de distribuição sejam fundamentais para uma resposta adequada aos desastres, alguns elementos podem exigir maior atenção por parte dos atores envolvidos na logística, como o perfil do incidente ou mesmo o tamanho da repercussão que ele gerou na mídia. Um deslizamento costuma resultar num número menor de vítimas, mas em mais óbitos do que uma enchente, por exemplo, em função do que os especialistas chamam de modo de início. As enchentes têm um modo de início lento, o que permite a mobilização das pessoas em direção a áreas seguras. O deslizamento envolve um início súbito, que oferece pouco tempo de reação. “Alguns anos atrás, em São Luiz do Paraitinga, uma enchente destruiu praticamente um terço da cidade, fazendo três mil vítimas, mas não tivemos nenhum óbito”, diz Brito Júnior.
Já a repercussão midiática, diz o docente, estimula as doações, o que é positivo por revelar a solidariedade da sociedade. Isso, no entanto, se reflete num aumento da demanda por logística, muitas vezes solicitada a gerir itens que não são necessários para aquele determinado contexto. “Infelizmente, nesses casos, é muito comum chegarem doações que, após passarem por uma triagem, precisam ser descartadas por não terem uso ou não atenderem às normas sanitárias, por exemplo”, diz.
No maior campo de refugiados do mundo, a convite da ONU
Os últimos anos foram movimentados na preparação de equipes para a logística humanitária. Pouco antes da pandemia de Covid-19, Brito Júnior esteve no Sudão do Sul e em Bangladesh, convidado pela ONU para lecionar um curso de extensão para equipes que atuam em grandes campos de refugiados localizados nos dois países. Um deles teve lugar em um daqueles que é considerado um dos maiores campos de refugiados do mundo. Localizado na cidade de Cox’s Bazar, em Bangladesh, abriga aproximadamente 900 mil refugiados da etnia rohingya, que desde meados dos anos 1990 fogem da perseguição em Mianmar. “O conteúdo era mais voltado para os efeitos da logística nos campos, mas os conceitos são muito parecidos com os cursos de extensão com as equipes da Defesa Civil, trazendo certas adaptações em função do tamanho do problema. Naquele campo de refugiados há uma demanda enorme e constante. Só para dar uma ideia, quase 20 caminhões de arroz chegam a ele todos os dias”, diz.
Com a eclosão da pandemia de Covid-19, Irineu integrou o Comitê de Logística Humanitária constituído pelo governo de São Paulo. Entre as atribuições do Comitê estava a de gerenciar a distribuição de 1,1 milhão de cestas básicas compradas pelo governo e doadas por empresas para famílias que ficaram sem renda. Também durante a pandemia, ele colaborou no planejamento do serviço funerário de São Paulo, Campinas, Santos e Guarulhos, que se preparavam para um eventual salto no número de óbitos durante a pandemia. “Acho que a pandemia ajudou a mudar o foco da atuação da Defesa Civil. Antes estava muito voltado para a questão das doações, e agora tem se dedicado mais ao planejamento das operações. Hoje ela está muito engajada no combate à dengue, por exemplo, atuando de forma proativa. Não era assim antes”, diz.
Cidades pequenas precisam se preparar
E se os últimos anos foram movimentados, o cenário futuro se mostra preocupante para profissionais que lidam com desastres. Especialistas apontam que, em função das mudanças climáticas, tanto os dos desastres naturais quanto aqueles causados pelo homem devem crescer em frequência e severidade. “Não é possível evitar um evento extremo, mas é possível construir cidades mais resilientes. A resiliência, do ponto de vista da Ciência de Materiais, implica sofrer uma deformação e voltar ao estado original. É o mesmo princípio, mas aplicado às cidades: a cidade é impactada, mas tem condições de responder àquele evento e retomar a uma condição anterior.”
Para o docente, uma indicação de que já vivemos um período de crescimento nos eventos extremos está no fato de que episódios passados que até então atingiam apenas grandes centros urbanos já se verificam em municípios menores. E aponta como exemplo as chuvas que causaram enxurradas e alagamentos graves nas cidades de Guaratinguetá e Aparecida em 2024, resultando em uma vítima fatal. “Hoje qualquer cidade pode ser afetada. Um município pequeno talvez não disponha de uma estrutura 100% dedicada a enfrentar esse tipo de problema. Mas é preciso que haja um mapeamento prévio das áreas de risco para que o poder público saiba onde ele está concentrado, e possa se preparar para responder.”
Fonte: Acontece Botucatu