Por jornal da Unesp

Pesquisadores da Unesp lideram projeto de restauração em Botucatu após incêndios

Fogo histórico destruiu mais de 1.000 hectares de território de rica biodiversidade em zona de transição entre Cerrado e Mata Atlântica em 2024. Leia:

Por jornal da Unesp

No dia 23 de setembro passado, enquanto participava de uma saída a campo para uma pesquisa, a ecóloga Renata Cristina Batista Fonseca enxergou os primeiros focos de incêndio na Fazenda Experimental Edgárdia da Unesp, em Botucatu. Fonseca não podia imaginar que, até o final de outubro, toda a comunidade da região estaria envolvida na luta para conter as chamas que se espalhavam e que, a cada hora, destruíam mais uma porção da vegetação natural que se espalha pelo território da cuesta de Botucatu.

Ver o fogo dominando a paisagem trouxe à tona memórias de uma vida inteira. Aquelas florestas foram palco dos estudos que conduziu ao longo de toda a sua carreira acadêmica, desde seus dias como estudante de graduação até o período em que se tornou orientadora de outros estudantes, o que é parte de suas atribuições como docente da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp (FCA), em Botucatu.

Frente à catástrofe e motivada pela relação estreita que desenvolveu ao longo de anos com aquela paisagem, Fonseca, em conjunto com colegas e estudantes da FCA, criou o projeto Restaura Cuesta. O objetivo da iniciativa é promover ações de recuperação das áreas queimadas e conscientização para evitar que desastres como esse voltem a acontecer. “Nós temos uma relação muito forte com todo esse ambiente e ele é, também, um espaço muito importante dentro do contexto da região de Botucatu. Na fazenda estão os últimos fragmentos de vegetação natural que restaram na cuesta, no interior do estado de São Paulo”, comenta Fonseca.

A Fazenda Experimental Edgárdia abrange mais de 1.200 hectares de terras, e serve como espaço de ensino, pesquisa e extensão usado pela comunidade unespiana e pela comunidade envolvente. A Edgárdia também está inserida em uma Área de Proteção Ambiental, a APA Cuesta Guarani, o que assegura a proteção da fauna e da flora da região, das feições geológicas e do Aquífero Guarani. “Uma característica importante é que essa região da cuesta é o encontro da Mata Atlântica com o Cerrado. É uma zona de transição de alta biodiversidade, onde se podem encontrar fauna e flora desses dois biomas”, diz Fonseca. “Por fim, a cuesta também conta com importantes áreas de recarga do Aquífero Guarani. Então, além de termos uma paisagem belíssima, com cânions e cachoeiras, também é uma região de extrema importância do ponto de vista ambiental”, explica.

Segundo Fonseca, o incêndio que afetou a Edgárdia foi criminoso, e teve início em uma área periférica da fazenda onde havia o descarte irregular de entulho e restos vegetais. Esse ponto de partida, aliado à seca prolongada que a região vinha enfrentando, criou o cenário ideal para que as chamas rapidamente se espalhassem, sem qualquer controle.

No Brasil, a maioria dos incêndios tem origem humana. Embora o fogo possa ser usado de forma controlada para prevenir desastres maiores e estimular o crescimento de certas vegetações, seu uso sem planejamento aumenta significativamente o risco de tragédias, como ocorreu na cuesta de Botucatu. Dados do monitoramento realizado pelo sistema Alarmes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que mapeia áreas queimadas e emite alertas de incêndio, apontam que cerca de 99% dos incêndios são causados por humanos, enquanto apenas 1% ocorre naturalmente, por conta de um raio.

Em Botucatu, os primeiros focos começaram a queimar no dia 22 de setembro, e as chamas só viriam a ser controladas na primeira semana de novembro. Foram destruídos 340 hectares das Fazendas Experimentais da Unesp, Edgárdia e Lageado, além de 695 hectares de terras situadas em áreas vizinhas. O resultado foi a perda de vegetação queimada, animais mortos ou afugentados, e lavouras destruídas.

Desde a primeira semana dos incêndios, grupos de estudantes, docentes e servidores da Unesp se mobilizaram e passaram a trabalhar em conjunto com entidades públicas e privadas a fim de controlar o incêndio e remediar os danos. “Nós organizamos uma força-tarefa para uma brigada voluntária formada por servidores da Unesp, tanto da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), quanto da FCA, também trabalhamos com a defesa civil e o corpo de bombeiros”, relembra Fonseca. “Foi articulada uma grande organização para tentar minimizar o impacto dos incêndios. Mas, mesmo assim, foi muito difícil”, ressalta a docente.

Protegendo a fauna

Durante os primeiros dias dos incêndios, Fonseca constatou a necessidade de acudir os animais que estavam sendo afetados pelo fogo. Junto com os demais integrantes do Laboratório de Conservação da Natureza, coordenado por ela, a ecóloga trabalhou em conjunto com o Centro de Medicina e Pesquisa em Animais Selvagens (CEMPAS) para realizar o atendimento emergencial da fauna atingida. Em paralelo, o grupo também organizou campanhas de conscientização para que a comunidade local soubesse como proceder e a quem chamar, caso avistasse algum animal machucado.

Essa iniciativa deu origem à primeira das cinco frentes das quais o projeto se compõe atualmente. São elas: restauração ecológica, diagnóstico e monitoramento, ações emergenciais para fauna, educação ambiental e sensibilização, e extensão rural. Cada um desses diferentes setores é coordenado por um pesquisador da FCA, FMVZ ou do Instituto de Biociência da Unesp, (IB-Unesp), e foram pensados para cobrir as diferentes demandas provenientes dos estragos causados pelo incêndio.

Com a combinação da ação do fogo e a chegada da temporada seca, os animais que sobreviveram viram seu habitat ser destruído, e o acesso ao alimento tornar-se limitado. “Mais ou menos no mesmo período em que iniciamos o atendimento emergencial para os animais, vimos a necessidade de proporcionar a suplementação da alimentação da fauna ali presente”, conta Fonseca.

Para ajudar mamíferos e aves, o grupo posicionou postos de alimentação, com frutos e sementes, num total de seis comedouros posicionados na região de transição entre a área queimada e a preservada. Essa iniciativa contou com a colaboração de entidades locais e estaduais como a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (CATI), o Banco de Alimentos de Botucatu e a ONG Cuesta Viva e a ONG Liga do Bem.

As ações de suplementação se mantiveram ao longo de três meses e foram acompanhadas com armadilhas fotográficas para monitorar o movimento de animais, além da possível presença de fauna exótica ou caçadores. “Essa foi uma grande frente de trabalho. Agora, estamos elaborando uma publicação que mostra como a suplementação auxiliou no retorno de alguns animais ao longo desse período”, conta Gilberto Vieira, mestrando do Laboratório de Conservação da Natureza da FCA-Unesp, e que integra o Restaura Cuesta desde seu início.

Registrando o fogo

Desde o início dos incêndios até o momento em que foram controlados, Vieira foi à fazenda diariamente, junto com seu colega de mestrado Gabriel Gumiero, para registrar o avanço do fogo usando drones. Os aparelhos realizaram voos sobre a área de cuesta para identificar os pontos onde se localizavam os principais focos, e determinar a magnitude das queimadas.

“O acesso à região de cuesta é muito difícil. Por isso, quando o incêndio tomou conta, os drones auxiliaram na localização de outros focos de incêndio, em especial para planejar as ações para tentar conter as chamas”, diz Vieira. Após registradas, as imagens eram compartilhadas com a equipe de brigadistas, com o corpo de bombeiros e com a equipe de defesa civil para definir as melhores estratégias.

O mestrando planeja retornar para a fazenda para registrar o quadro da paisagem depois da devastação pelo fogo. A empreitada, entretanto, tem se mostrado difícil. Muitas das zonas de cuesta afetadas pelo incêndio apresentam um risco crescido para deslizamentos. As raízes das árvores que foram queimadas, e que sustentavam as encostas não apresentam mais a mesma resistência, o que, somado à temporada de chuvas, tem aumentado a instabilidade do solo e o risco de acidentes.

 Restauração, um processo demorado

Com a fauna acudida e o fogo controlado, Fonseca viu a necessidade de levantar uma perspectiva mais geral dos estragos causados. Daí surgiu, de fato, o projeto Restaura Cuesta. “No momento estamos na fase de mapear as áreas atingidas para determinar em que regiões podemos entrar com projetos de restauração ecológica, como o plantio de mudas de espécies nativas”, explica a docente. “Também estamos desenvolvendo a frente de extensão rural. Nosso objetivo é trabalhar para além das ‘cercas’ das nossas fazendas e promover tanto a sensibilização como a educação ambiental, a fim de evitar que incidentes como esse voltem a acontecer”, diz.

Recuperar as áreas perdidas, entretanto, não será uma tarefa fácil ou barata. Algumas das áreas queimadas eram florestas monitoradas há mais de 40 anos. Outras eram regiões de mata pristina, termo usado para se referir a coberturas vegetais muito antigas, que antecediam a criação das próprias fazendas. “Levou décadas para que essas regiões alcançassem o ponto em que estavam quando foram destruídas pelo fogo. Por isso, é muito difícil prever quanto tempo será necessário para a restauração desses ambientes. Pode levar muitos anos”, diz Fonseca.

Mesmo assim, o pontapé inicial dos esforços de restauração já foi dado, por meio de um mutirão para o plantio de mudas no local onde o incêndio teve início. A área de um hectare, agora abriga 1.600 mudas de árvores nativas, plantadas em uma ação simbólica que reuniu ONGs e entidades públicas e privadas. A previsão é que, no decorrer do próximo ano, sejam replantados mais 19 hectares. “É muito importante que as mudas sejam mantidas vivas após plantadas”, diz Diego Sotto Podadera, docente da FCA que coordena a frente de reflorestamento. “Não adianta fazer a implantação de uma área, mesmo que esse processo seja feito da melhor maneira possível, se não assegurarmos uma manutenção por, pelo menos, mais dois anos após o plantio”, diz. “Esse acompanhamento é uma etapa essencial e que aumenta as possibilidades de sucesso do reflorestamento.”

O tempo para que as mudas se tornem independentes representa um desafio para a prospecção de recursos. Segundo Fonseca, o valor para plantio e manutenção por três anos é de cerca de R$50 mil por hectare. Se considerarmos apenas as fazendas experimentais, onde a área devastada pelo fogo alcançou 340 hectares, o montante necessário para financiar essa ação alcança R$ 17 milhões. No momento, os próprios funcionários da fazenda são responsáveis pela manutenção das regiões plantadas, que envolve o controle de formigas e capinar as áreas para evitar o crescimento de espécies invasoras.

“Também nos preocupamos com a diversidade de plantio. Selecionamos algumas espécies nativas que vão crescer mais lentamente, mas podem amplificar a biodiversidade. E, também, acrescentamos outras espécies, que apresentam crescimento mais rápido, para garantir essa cobertura inicial”, explica Fonseca. “Na restauração ecológica é preciso pensar na diversidade e, principalmente, na interação da fauna local, que vai atuar, por exemplo, na parte de dispersão de sementes”, diz. Algumas das espécies plantadas foram a Paineira, a Embaúba, a Aroeira Pimenteira e a Mutamba.

O futuro da cuesta

Para acompanhar o reflorestamento e seus desdobramentos, uma das frentes do projeto é de diagnóstico e monitoramento. Ela é coordenada por Caio Ballarin, pós-doutorando do Instituto de Biociências da Unesp. Ballarin diz que o principal objetivo é conseguir reunir a maior quantidade possível dos dados gerados na fazenda desde sua criação, no começo da década de 1970. “A partir dessa rede de dados, poderemos desenvolver pesquisas para avaliar, por exemplo, como o fogo afetou as diferentes esferas dos ecossistemas que existiam na fazenda”, diz o biólogo.

Até o momento, o grupo reúne professores ativos e aposentados, que se dispuseram a compartilhar os dados de suas pesquisas, nas áreas de mamíferos, aves, herpetofauna, ecologia florestal e dinâmica de captação de carbono nas florestas. Alguns desses levantamentos remontam a mais de três décadas.

Ballarin diz que alguns dos principais benefícios que essa abordagem trará envolvem acompanhar, de maneira sistematizada, a recuperação das áreas afetadas, em comparação às que não foram queimadas. Em especial, será possível observar a forma como a Mata Atlântica vai responder ao incêndio. Isso é importante, pois ainda não existem informações sobre a dinâmica de recuperação da Mata Atlântica após o impacto das queimadas. “Esse acompanhamento também vai nos permitir mensurar os gastos para a recuperação desses espaços: quanto vamos precisar de mão de obra, de manutenção, de mudas, para recuperar essa área? E o quanto de serviços ecossistêmicos perdemos?”, diz Ballarin. Neste sentido, o desastre abriu espaço para estudos que, a longo prazo, podem aumentar o conhecimento tanto sobre os tipos de impacto do fogo em diferentes ecossistemas, como também aumentar a precisão do planejamento em áreas de restauração.

O desafio de evitar incêndios futuros

Os incêndios em regiões de cuesta têm se tornado uma preocupação crescente. Segundo Fonseca, desde o começo de sua graduação, nunca houve um incêndio tão intenso como o vivenciado em setembro passado. Antes disso, os focos eram menores e rapidamente controlados, em geral, em beiras de estrada. Entretanto, a pesquisadora vê com preocupação o fato de que as temporadas de estiagem estão mais longas, o que faz com que a vegetação fique mais seca e, consequentemente, mais vulnerável para o alastramento do fogo.

Embora existam planos de prevenção e de contenção de fogo no município, os equipamentos e equipes que estavam disponíveis para o trabalho de combater o fogo, no segundo semestre do ano passado, se mostraram insuficientes diante da magnitude da emergência. A insuficiência de meios e de pessoal impediu que os incêndios fossem controlados mais rapidamente. Frente a isso, pesquisadores da FCA, FMVZ e IB estão iniciando estudos para compreender melhor as áreas de vulnerabilidade e determinar os fatores que possam levar um incêndio a se espraiar pelas zonas de cuesta.

“Uma das coisas que percebemos de antemão é a necessidade da manutenção de áreas que estão mais degradadas, ou mesmo abandonadas, porque a matéria orgânica ali pode ser um importante fator para impulsionar um incêndio”, explica Fonseca. “Outro ponto importante é que o solo da cuesta é composto por muitos fragmentos de rocha, que criam espaços vazios no solo e abrigam oxigênio. Isso faz com que ocorram incêndios subterrâneos, conhecidos como fogo de raiz. Nessas condições, o fogo pode persistir por dias abaixo do solo, aumentando a dificuldade de controle.”

Fonte: Acontece Botucatu

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