Professor doutor da Unesp de Botucatu reflete sobre um dos maiores clássicos da humanidade
Uma curiosa epopeia narrada em quase mil páginas transcorreu entre a manhã do dia 16 e a madrugada de 17 de junho de 1904. Mais impressionante que isso: suas raízes remontam a um dos maiores clássicos da humanidade, que no ocidente só perde em fama para a Bíblia.
Voltemos ao início. Ainda que não tenham lido os versos, poucos desconhecem as histórias contadas na Ilíada e na Odisseia. Ao longo dos séculos, tem se discutido se seu suposto autor, Homero, existiu de fato. E caso seja uma pessoa real, se terá criado esses textos ou somente fixado a forma de uma narrativa já repetida pelos aedos (recitadores de poemas épicos) em momentos festivos.
A chamada “questão homérica” incita discussões acadêmicas apaixonadas e não raramente ferozes. Mas não se põe em dúvida a qualidade desses textos. Mesmo o leitor comum se impressiona com a velocidade de ação da Ilíada (uma espécie de “pulp fiction” da antiguidade) e a obstinação de Odisseu no retorno a sua terra natal.
E embora se diga que a Ilíada é um produto de melhor acabamento, é a Odisseia que nos cativa a imaginação, a ponto de entrar em nossa língua. Note-se que o Dicionário Houaiss registra três significados para “odisseia”: (1) longa perambulação ou viagem marcada por aventuras, eventos imprevistos e singulares; (2) narração de viagem cheia de aventuras singulares e inesperadas; (3) travessia ou investigação de caráter intelectual ou espiritual. Lembremos aqui do filme clássico de Stanley Kubrick, 2001 – Uma odisseia no espaço.
A Odisseia de Homero narra as desventuras de Ulisses (outro nome de Odisseu) tentando voltar da guerra de Troia para sua terra natal, Ítaca. Seu retorno é dificultado por Posseidon, em retaliação por ter aquele furado o olho de seu filho, o ciclope Polifemo. Enquanto isso, pretendentes à mão de sua esposa Penélope espoliam seus bens e planejam assassinar seu filho Telêmaco. Após várias peripécias – que incluem o famoso episódio das sereias aladas – com a ajuda da deusa Atena, Ulisses/Odisseu volta à casa, é reconhecido por Penélope e faz uma chacina dos pretendentes.
Acredita-se que a Odisseia de Homero tomou sua forma escrita entre os séculos VIII e VI a.C. Mas hoje nos interessa o livro Ulysses, publicado por James Joyce em fevereiro de 1922. Nele, a Odisseia se converte na epopeia do homem moderno que deixa sua casa na manhã de 16 de junho de 1904 e vive diversas aventuras na cidade de Dublin até conseguir voltar para seu quarto, já na madrugada do dia seguinte.
E é exatamente nos paralelismos com a obra homérica que James Joyce atinge o ápice de seu talento.
O Odisseu moderno é Leopold Bloom, judeu convertido, pequeno agente comercial. Penélope é Molly Bloom, sua esposa infiel. A visita ao Hades (inferno grego) é substituída por um enterro. As sereias são garçonetes. Nausícaa (princesa que encontra Odisseu náufrago) é uma moça que tem interação platônica com Bloom em uma praia. Telêmaco é Stephen Dedalus – o alter ego do próprio Joyce, que ao fim do livro encontra em Leopold uma figura paterna.
Ulysses não é uma imitação ou paródia – há no livro citações diversas (como a discussão sobre Shakespeare na Biblioteca Nacional da Irlanda) e personagens que apareceram em contos de sua obra anterior, “Dublinenses”. E há também técnicas inovadoras de redação, desde estilo de manchetes de jornal a diálogos de teatro. O mais famoso é o fluxo de consciência, presente no monólogo de Molly Bloom que fecha o livro.
Grande parte dos críticos literários considera Ulysses a mais importante obra de ficção do século XX. O dia 16 de junho passou a ser chamado Bloomsday e é comemorado por amantes da literatura em todo o mundo.
Ulysses é muito discutido e não há razão para ser pouco lido. Há três traduções brasileiras: por Antônio Houaiss (sim, o do dicionário!), Bernardina Pinheiro e Caetano Galindo. Recomendo as duas últimas, que recuperam o tom coloquial que Joyce desejou em sua obra.
Há quem diga que a leitura de Ulysses é difícil. Prefiro pensar que é como uma trilha na mata em área montanhosa – em igual medida desafiadora e gratificante. Até porque é um romance que termina com a palavra “sim”.
Sugestões de leitura:
- Homero. Ilíada e Odisseia. Tradução Frederico Lourenço. Companhia das Letras, 2018.
- Gregory Nagy. Questões homéricas. Editora Perspectiva, 2021.
- James Joyce. Ulysses. Tradução Caetano Galindo. Companhia das Letras, 2012.
- Caetano Galindo. Sim, eu digo sim: Uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce. Companhia das Letras, 2016.
Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza
Possui graduação em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (1994), mestrado em Patologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, 1999) e doutorado em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2005). É livre docente em Moléstias Infecciosas pela Universidade Estadual Paulista (UNESP, 2013). Atualmente é Professor Titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Tem experiência na área de Medicina, com ênfase em Doenças Infecciosas e Parasitárias, atuando principalmente nos seguintes temas: controle de infecção hospitalar, epidemiologia hospitalar, vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis e epidemiologia de microrganismos multidroga-resistentes.
Durante a pandemia de COVID-19, desenvolvido pesquisa envolvendo modelos de simulação computacional, geografia da saúde e análises de séries temporais para estudar o comportamento epidemiológico do SARS-Cov-2 (especialmente em áreas afastadas das grandes metrópoles) e a efetividade de políticas públicas de vigilância e resposta. Também em COVID-19, coordenou a análise efetividade da vacina AztraZeneca/FiOCruz, um dos maiores estudos mundiais de “vida real” sobre vacinas contra o SARS-Cov-2.
É Diretor da Faculdade de Medicina de Botucatu (Universidade Estadual Paulista) desde 2023 e membro do corpo editorial dos periódicos Journal of Hospital Infection e PLoS One.
Texto de Carlos Magno Castelo Branco Fortaleza