Pesquisadores da Unesp de Botucatu defendem restrições e até proibição do uso do inseticida fipronil

Só este ano, Brasil registrou centenas de milhões de mortes de abelhas atribuídas à ação do defensivo agrícola.

Ao chegar para trabalhar em seu apiário na cidade de Itatinga, SP, certa manhã de janeiro passado, o apicultor Joel Andrade se deparou com uma cena digna de um filme de terror. Nas caixas que serviam como suportes para as colmeias, as entradas estavam abarrotadas com os remanescentes de centenas de abelhas mortas. E as surpresas continuaram. Ao longo da semana, ele viu morrerem todos os integrantes de cerca de quarenta colmeias. Em um mês, outras 20 colônias desapareceram. Das que restaram, pouco pôde ser salvo; a maioria definhou até ter a produtividade zerada. “Perdi 120 colmeias, o que gerou um prejuízo de  aproximadamente R$100 mil”, diz ele.

Joel Andrade é presidente da Associação de Apicultores do Polo Cuesta, que reúne profissionais das cidades de Pardinho, Botucatu, Bofete, São Manuel, Pratania, Avaré, Paranapanema, Anhembi e Itatinga. Ele relatou a perda à Defesa Agropecuária do Estado de São Paulo que monitora os eventos de mortes de colmeias. Os funcionários do órgão atribuíram a mortandade ao uso do inseticida fipronil por algum agricultor nas proximidades.

Os apicultores brasileiros já se acostumaram com essas perdas. Em 2017, foram contabilizadas mortes de 50 milhões de abelhas em Santa Catarina, e de 500 milhões de polinizadoras no Rio Grande do Sul, entre 2018 e 2019. Só neste ano, foram registrados 100 milhões de mortes de abelhas no estado do Mato Grosso, apenas no mês de junho. Em julho, houve relatos de perdas no estado de Minas Gerais, e mais 80 milhões de mortes de abelhas na Bahia.  Em comum, todos estes eventos foram atribuídos ao uso do fipronil.

A substância já consolidou uma reputação global de letalidade com as abelhas, o que lhe valeu proibições em países como Colômbia, Uruguai, Costa Rica, Vietnã e África do Sul, além de toda a União Europeia. No Brasil, seu uso tem sido cada vez mais contestado, embora seja proibido apenas em poucos estados (veja quadro abaixo). “Estamos falando de um inseticida que é extremamente tóxico para o meio ambiente e que promove alterações no sistema nervoso central dos insetos” diz Ricardo Orsi, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp, campus Botucatu. “O resultado é a ocorrência de desorientação, tremores, convulsões, paralisia e morte.”

Aqui no Brasil, o uso do produto foi debatido na quinta-feira, 23, em audiência da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. Lá, apicultores e representantes da sociedade civil se manifestaram a favor da proibição do uso do fipronil e de outros agrotóxicos responsáveis pelos casos de mortes massivas de abelhas.

O fipronil no Brasil

A empresa alemã Basf adquiriu a patente do defensivo em nível global em 2003 e manteve o produto no Brasil até 2011, quando perdeu os direitos da patente. Liberada inicialmente pelas autoridades brasileiras para aplicação apenas no solo, em culturas de cana-de-açúcar ou em sementes de armazenamento, teve suas restrições flexibilizadas. Hoje seu emprego é autorizado em qualquer tipo de monocultura e no controle de pragas foliares, e a aplicação é feita diretamente nas folhas da plantação. “Após a queda da patente, a produção também passou a ser feita por diversas empresas” diz o pesquisador Osmar Malaspina, do Instituto de Biociências da Unesp, campus Rio Claro. “Com a liberação do Ibama, foram elaboradas diversas formulações e esse foi o grande problema: todos tiveram a possibilidade de produzir e adquirir o produto”, diz.

Por meio de sua assessoria, a Basf declarou ao Jornal da Unesp que associa os episódios de alta mortalidade de abelhas cada vez mais notificados à utilização incorreta do produto. E disse defender maiores restrições e mais fiscalização. “Apoiamos uma regulamentação em nível federal que venha a restringir o uso de fipronil para aplicação foliar”, disseram os representantes da empresa. A declaração também reforçou que a utilização apropriada do produto deve ser feita abaixo da superfície do solo, de maneira a evitar contato com organismos sensíveis da superfície, como abelhas ou outros polinizadores.

No Brasil, a utilização do fipronil está em processo de reavaliação pelo Ibama desde 2012 mas segue a passos lentos. Esse ritmo gera preocupação em pesquisadores, apicultores e meliponicultores, que buscam a proibição do uso do produto. Isso já se tornou realidade nos estados de Goiás e Santa Catarina. Além disso, a bula do produto diz que é proibida a aplicação aérea e em épocas de floração, ou mesmo quando é observada a visitação de abelhas nas lavouras. Apesar dos números impressionantes relatados nos últimos anos, os pesquisadores acreditam que a fiscalização da utilização do inseticida, além de envolver diversos desafios, tem na verdade se mostrado pouco eficiente.

Durante a audiência da Comissão de Legislação Participativa na Câmara dos Deputados, o deputado Padre João (PT-MG), responsável por propor o debate, defendeu a realização de concurso público para os órgãos de fiscalização e a retomada do Programa Nacional para Redução do Uso de Agrotóxicos (Pronara). “Na questão das abelhas, quando se avança é um tiro, não no pé, mas no coração do próprio agronegócio, porque elas fazem uma tarefa de graça, que é a polinização”, disse.

Além de produtoras de mel e de outros produtos aproveitados pelos seres humanos, as abelhas também são importantes agentes polinizadores de muitas espécies de plantas, garantindo a continuidade de flora ameaçada e contribuindo para a biodiversidade dos ecossistemas. Além de beneficiar flores silvestres, o serviço de polinização também é um aliado das plantações: por meio da transferência do pólen, elas contribuem para um aumento da qualidade e produtividade da cultura. “Então a produtividade de muitas culturas vai cair com o extermínio das abelhas”, disse Padre João. “Aonde chegaremos se não tivermos a sensibilidade e a iniciativa para conter esse processo?”

Letal mesmo em microdoses

Orsi, que é presidente da comissão técnico-científica da Confederação Nacional de Apicultura e Meliponicultura – CBA, também esteve presente durante o debate na Câmara dos Deputados. O pesquisador chama a atenção para o fato de que, além do efeito agudo que causa a morte quase instantânea de milhares de abelhas, o fipronil é igualmente perigoso em doses consideradas subletais. Estas não causam a morte de mais da metade da colônia em menos de 48h, mas são responsáveis por afetar de maneira sistêmica o funcionamento das abelhas e levar a colmeia ao colapso em até oito semanas.

Em artigo publicado em 2015, na revista científica Environmental Toxicology and Chemistry, o grupo de pesquisa liderado por Orsi determinou quais seriam as doses letais e subletais de fipronil às quais as abelhas deveriam ser expostas para sofrer com os efeitos da substância. Uma dose letal é definida como a quantidade que apresenta um grau de toxicidade agudo, responsável por matar mais de 50% de uma colônia em até 48h. Já as doses subletais são aquelas que infligem consequências crônicas, que podem ser acompanhadas com o decorrer dos dias.

No estudo, os pesquisadores utilizaram diferentes concentrações de fipronil para expor as abelhas ao contato e ingestão. Como resultado, eles identificaram que, por ingestão, a dose letal média da substância era de 0,19 microgramas (μg), ou seja, o equivalente a um grama dividido em um milhão. Entrando em contato, a quantidade para que a dose seja letal é ainda menor: de 0,009 μg. Uma vez contaminadas pelo inseticida, quando as abelhas retornam para a colônia, elas são responsáveis por contaminar as outras com quem entram em contato ou alimentam. Assim, o efeito do fipronil é espalhado pela colmeia levando à morte ou ao definhamento da maioria dos indivíduos (veja quadro abaixo).

Os números seguem caindo quando são analisadas as doses subletais. Uma abelha precisou ingerir apenas 0,0004 microgramas para sofrer os efeitos de intoxicação crônica. As abelhas operárias têm seu senso de tempo e direção alterados, o que torna a tarefa de polinização e de retorno para a colônia progressivamente mais complicada. Além disso, elas também têm as glândulas hipofaringeanas e mandibulares afetadas, estas estruturas são responsáveis por produzir a geleia real, um alimento exclusivo da abelha rainha. Sem uma alimentação adequada, a produção de ovos da abelha rainha começa a cair, chegando a zero após oito semanas do primeiro contato. De maneira semelhante, ocorre o declínio do desenvolvimento de larvas e pupas, processo que chega a zero após seis semanas. Assim, o grupo constatou que em mais ou menos dois meses uma colônia inteira pode entrar em colapso.

“Esses efeitos sistêmicos tornam difícil associar as mortes ao fipronil, porque não acontece aquela cena chocante de encontrar muitas abelhas mortas na boca da caixa”, explica Orsi. “O que ocorre é que o apicultor vê uma pequena mortalidade e depois começa a perceber que a colônia não se desenvolve. Isso acontece devido às doses subletais, que penetraram e não deixaram a colônia ir para frente”, diz.

O princípio ativo mais presente

A fim de esclarecer qual o real impacto do uso dos defensivos agrícolas sobre os episódios de mortandade de abelhas, e facilitar a coexistência entre apicultores, agricultores e populações do inseto, Malaspina coordenou o projeto Colmeia Viva. O projeto foi uma realização do SINDIVEG (Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal), e realizado em parceria com a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e com Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ao longo de quatro anos, a equipe do projeto conduziu o Mapeamento de Abelhas Participativo (MAP), que envolveu o monitoramento de ocorrências de mortes massivas de abelhas no estado de São Paulo e a coleta de amostras no local, a fim de investigar e identificar as causas.

Ao todo, a equipe realizou mais de 80 coletas de amostras, com mais de cem abelhas por amostra em diferentes cidades do estado. O fipronil foi encontrado em 59 casos, o equivale a, aproximadamente, 70% das ocorrências analisadas. Anos mais tarde, os dados foram corroborados por um levantamento da Defesa Agropecuária do Estado de São Paulo, que realizou coletas em municípios do estado entre 2020 e 2022 para identificar os principais resíduos de defensivos agrícolas encontrados em abelhas mortas. A equipe responsável analisou 62 amostras, envolvendo um total de 2.759 abelhas. Dos 49 casos em que foi possível identificar resíduos tóxicos, o princípio ativo mais comum foi o fipronil, presente em 63% das ocorrências. Em um distante segundo lugar ficou a bifentrina, presente em 22% das coletas.

“Isso demonstra a robustez dos dados. Duas pesquisas com quantidade expressiva de amostras, realizadas em momentos diferentes, chegaram a resultados semelhantes”, aponta Malaspina. O docente esteve presente no debate da Câmara dos Deputados, e também  em reuniões recentes realizadas no Ibama para debater os desdobramentos da utilização de defensivos agrícolas particularmente tóxicos para as abelhas.

Malaspina diz que já há informação suficiente para implementar uma restrição do uso da substância em nível nacional, com delimitação de culturas e formas de utilização específicas de maneira a controlar seu impacto. “O impacto negativo do fipronil já é um consenso na comunidade científica e há diversas análises com dados contundentes. Agora está nas mãos do Ibama definir o que fazer”, diz.

Para Malaspina, é possível realizar a substituição por substâncias menos tóxicas, porém há resistência por parte do agronegócio dada à eficácia do componente. “Outras moléculas podem ter ações mais lentas e nós estamos acostumados a querer um resultado imediato”, afirma o biólogo. Para ele, a tendência é que ocorra a restrição da utilização ainda em 2024, proibindo ao menos a aplicação foliar do inseticida. Renata Sordi Taveira, da Coordenação da Defesa Agropecuária do Estado de São Paulo, explica que é um direito do apicultor notificar situações de mortes massivas. A partir daí, cabe ao órgão conduzir as investigações para determinar as causas. Nesse sentido, o apicultor Joel reforça a importância de profissionais da área estarem devidamente registrados na Defesa. “A análise é feita de graça para o apicultor e isso colabora para manter um controle sobre as mortes e fornece documentos para que o apicultor possa ir atrás dos seus direitos”, diz.

Fonte: Acontece Botucatu

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